santos contornos

lobélia carvalho
2 min readSep 12, 2023

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enxergo no tempo a secura. a mim, enxergo encharcada, quase translúcida de respingos. marco o espaço em que meus olhos devem circular para que eu não precise me debruçar — para que eu não queira — na ânsia de ver. no lugar, meu comportamento tremeliquento fala de escombros, de um único edifício de pé, do fogo e do silêncio emergente. no silêncio eu encontro um naco de lucidez. penso um aforismo imbecil e caçoo do sol enquanto ele não me alcança.

não há outra ladeira por onde meus pés saibam subir hoje. querem a maledicência, o gosto, a ternura, o receio, a dor. e caminham quase que sem real vontade, mas num ímpeto apressado. esquecer. tudo é redondo demais, qualquer estrondo ou pequeno sussurro soam univitelinos, não me vem a noção de nada. e então o dia novo se lança a nós como uma garoa fina de poucos amigos, fazendo valer todas as pequenas gotas e as doces sensações de cada uma.

como é cruel a dor do desejo. eu vejo prédios cintilando, ônibus pifados na avenida, folhas de coqueirais desabando em jardins antigos, mas sinto que palavra alguma me detém. é tudo tão oco e desobstruído, coisa nenhuma parece querer se segurar. ainda assim o cheiro familiar do que não deveria ser querido avança como uma andorinha azul leve num céu ermo. eu não me reconheço em nenhum destes grafemas. mas a memória de um lapso, um clarão dentro da cabeça, me segura no lugar. e eu continuo pensando em como me secar. meu peito pede corpo e espírito.

a água bate incessantemente contra a parede de gramíneas; é como se fosse antinatural, um ondular marítimo naquilo que muito mais é fluvial. mas não me perguntam se interessa. mar e húmus se chocam e invadem as tão díspares iniciativas de criação, tomam partido sem necessariamente zangar os ânimos. de certa distância penso quero pôr as mãos na terra quero afundar o rosto n’água quero o barro e não conseguir me desvencilhar. “ambas as mãos sobre o corpo”, como numa reza pueril em que ninguém entende ainda os parafusos rudes e enferrujados da fé. sente-se uma fome que atrairia sorrisos zombeteiros. toma forma, se move em direção.

não, não. assento as calefações do meu corpo. desacoplo as asas do dorso. espanto os animais que se aproximando vinham. dou as costas e deixo que o sol me ferva o pranto.

kokuriko-zaka kara

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